domingo, 20 de maio de 2018

ALIENAÇÃO (PARTE 4): O FIM DO TRABALHO E A PRODUÇÃO DO SER HUMANO

Outras perspectivas: a produção do ser humano


por Jean Pires de A. Gonçalves

A prática, e não o sujeito, é a base das relações sociais. Porém, ela não se confunde com o sujeito, mas, pelo contrário, o sujeito emerge historicamente da praxis social; tanto na sua forma teórica (sujeito cognoscente, ativo), como na sua forma social (contratual). Portanto, não há um movimento paralelo no desenvolvimento econômico em relação à prática social. Ambos coexistem, implicam-se, um no outro. A praxis engendra as relações sociais, políticas e econômicas. Sobretudo, a prática engendra contradições sociais. Entretanto, estas contradições podem engendrar novas práticas.

Deixemos agora as idiossincrasias de Kurz de lado. Todavia, o estudo de seus textos foi necessário, porque, como vimos, trata-se de uma interpretação atual da teoria do fetiche da mercadoria, levando a extremo todas as suas consequências. Grosso modo, parte-se do pressuposto da invasão da mercadoria em todos os aspectos da vida, nada escapando de seus efeitos degradantes, numa socialização negativa. De algum modo, ela reflete um contexto sócio-histórico, atendendo expectativas práticas e teóricas de setores políticos. Ao impossibilitar qualquer emancipação possível no cerne do “novo sistema produtor de mercadorias”; esta só poderia advir de um plano transcendente, isto é, fora da sociedade constituída por suas categorias. Entretanto, há pelo menos duas lacunas que esboroam qualquer tentativa nesse sentido: primeiro, porque supõe um binômio metafísico interior-exterior; sendo que o “exterior” é concebido apenas dedutivamente sem, no entanto, apresentar qualquer indício ou pista para alcançá-lo. Segundo, porque não compreende um sentido de superação pela tensão das contradições. A sensação de inadequação de alguns indivíduos não é suficiente para se constituir um projeto de mudança efetiva; é extremamente vago[1]. Esta claro que tal perspectiva teórica se encontra a oeste na rosa dos ventos do mapa-múndi político. Porém, como absorve concepções tradicionais da esquerda enfatizando apenas sua relevância científica e, ao mesmo tempo, tripudiando seu sentido militante e engajado, permanece numa noite em que todos os gatos são pardos.

Deste modo, outras interpretações são cabíveis partindo-se dos mesmos referenciais. É por estas veredas que nossa reflexão seguirá agora: repensar o conceito de trabalho.

Não só o marxismo vulgar associou intimamente produção e economia, mas, no interior da divisão das ciências, esta concepção revelou-se promissora. Isto porque de fato no capitalismo a base econômica é central, e por isso seu fundamento é o trabalho.

No capitalismo, a economia política é essencial. (...) As sociedades históricas tiveram sua base econômica, certamente; não há sociedade sem ‘produção’, no sentido do termo; no entanto, nas sociedades passadas, as relações sociais mais importantes não eram econômicas. Tomemos as sociedades medievais. As relações hierarquizadas se construíram sobre uma base econômica, sem se reduzir a ela; as relações de violência entre senhores e vassalos foram ‘extra-econômicas’ pois elas permitiam extrair do trabalho agrícola e artesanal um sobreproduto, por meio de uma pressão direta, o que os mecanismos (que deviam surgir pouco a pouco, mas não existia, de início: o mercado, o dinheiro) não permitiam. Em resumo: em seu caráter elementar e violento ainda natural, as relações sociais características da sociedade medievais se definem para Marx como relações pessoais, imediatas, portanto, transparentes. (...) No capitalismo, a base econômica comanda. O econômico comanda. As estruturas e superestruturas organizam as relações de produção (o que em nada exclui os atrasos, os distanciamentos e as disparidades) (LELEBVRE, 1999, pp. 111 e 112).

Neste sentido, o trabalho não foi sempre uma categoria econômica. “A formação do capital e do capitalismo passa por uma fase de submissão formal do trabalho social ao capital” (ibidem, p. 108). Portanto, fora do sistema capitalista, a economia não ocupava uma centralidade. Nas formações pré-capitalistas, como a sociedade medieval, as determinações políticas regulavam diretamente o regime da vida social, inclusive os estatutos da servidão. Logo, nestas sociedades não havia trabalho? Não é isso. Em toda a história da civilização, a maior parte da sociedade foi mobilizada em atividades com vistas à reprodução material. A diferença é que a produção não isolava o trabalho numa esfera autônoma, separada da totalidade da vida. Isto é, o trabalho está lá, mas não isolado, enquanto forma ou categoria econômica. Mesmo nas sociedades onde o comércio era intenso, como na Antiguidade, o trabalho assalariado era residual, não entrava na circulação de mercadorias. Somente no capitalismo trabalho é exclusivamente dirigido para um único fim: a produção de mercadorias. A exploração se dá agora não diretamente, mas por coações econômicas. Assim sendo, as sociedades modernas – isto é, o liberalismo clássico – não adotaram o conceito de trabalho mas constataram que pelo trabalho gerava-se riqueza. O grande mérito de Marx, e o que faz com que este não seja um herdeiro da tradição liberal, foi ter demonstrado um fundamento negativo no trabalho, a saber: é inerente ao trabalho gerar a pobreza humana, em todos os sentidos. Descortinando historicamente as categorias da economia política, tidas por naturais, Marx trouxe à luz a exploração do trabalhador (mais-valia). Noutras palavras, a riqueza se realiza no domínio das coisas numa relação inversa ao domínio das relações propriamente humanas.

Feitas estas considerações, ainda fica em aberto a definição de produção. Se observarmos bem a citação acima, Lefebvre é categórico: não há sociedade sem “produção”. Mas, então, qual o seu sentido? Pode-se, eventualmente, produzir mercadoria; pode-se produzir para a subsistência; pode-se produzir artesanato; pode-se produzir obra de arte; etc. Notam-se objetos de diferentes qualidades que modificam o verbo produzir. O que é produção?

Aqui vem a fórmula decisiva. O que é produção? Num sentido amplo, herdado de Hegel, mas transformado pela crítica da filosofia em geral e do hegelianismo em particular, pela contribuição da antropologia, a produção não se limita à atividade que fabrica coisas para trocá-las. Existem as obras e os produtos. A produção em sentido amplo (produção do ser humano por ele mesmo) implica e compreende a produção de ideias, das representações, da linguagem. (...) Assim, a produção não deixa nada fora dela, nada do que é humano. O mental, o intelectual, o que passa pelo ‘espiritual’ e o que a filosofia toma como seu domínio próprio, são ‘produtos’ como o resto. Há produção das representações, das ideias, das verdades, assim como das ilusões e erros. Há produção da própria consciência. (...) No sentido estrito, há produção de bens, de alimentação, de vestuário, de habitação, de coisas. Este último sentido apoia o primeiro e designa sua base material. (ibidem, p. 46)[2].

Assim, Lefebvre questiona: “Por que as observações críticas economizariam o pensamento crítico?” (ibidem, p. 47). Interpretamos nesta frase que o “economizariam” pode ter duas acepções recíprocas, o da redução a apenas um único aspecto e, por conseguinte, o próprio sentido economicista dos conceitos da teoria. Aqui, eis uma pista da teoria do fetiche.

Toda sociedade humana produz. Produção é criação. A produção engendra relações; num sentido ainda mais profundo, constitui o próprio ser humano e, por conseguinte, produz a consciência. Ou seja, linguagem, pensamento, instrumentos, arte, ciência etc. A prática – atividade – é seu fundamento, o que há de mais concreto. O mínimo gesto já define uma prática. Neste caso, é interessante a seguinte formulação fundamental em Lefebvre:

O ato do pensamento destaca da totalidade do real, mediante um recorte real ou ‘ideal’, aquilo que é correntemente chamado de um ‘objeto de pensamento’. Um tal produto abstrato do pensamento não apresenta nada mais de misterioso que um produto da ação prática. Esse martelo é um objeto que isolo provisoriamente por meio de contornos definidos; ele vai me permitir separar da totalidade natureza outros objetos (essas pedras que quero cortar), vai me permitir impor a tais objetos, por seu turno, contornos bem definidos. (LEFEBVRE, 1995, p. 112).

A produção das coisas materiais alcança o nível abstrato que molda, forma e conforma as relações sociais e materiais. O espaço é produzido, assim como o tempo.

Um operário trajado com roupas sujas e amarrotadas finca no chão a enxada para limpar o terreno, que será escavado por tratores e máquinas movidas por outros operários, onde triunfalmente serão lançados os alicerces de uma grande edificação. Ali ele inicia um movimento, mínimo. Em poucos meses, porém, esses trabalhadores erguem um esqueleto monumental que se atira em direção ao zênite. Logo em seguida, as paredes isolam a construção do vento e da chuva. Agora, só resta o acabamento. O prédio, enfim, edificado, poderá servir para muitos propósitos. Mas supomos que neste caso se estabeleça ali um fórum de justiça. Provavelmente este espaço será grandioso; vigorosas colunas potencializam seu esplendor, uma portaria imensa abre-se para um vestíbulo descomunal com um teto altíssimo e ornado com lustres de cristal de se perder a vista. Diante dele nos sentimos formiguinhas insignificantes. Socialmente, este prédio representa o poder; onde serão tomadas decisões sobre as demandas sociais em litígio. Este é o seu reconhecido sentido simbólico, sua representação. Edificado, o operário da enxada jamais poderá atravessar seu portal com suas velhas roupas desbotadas e puídas. Os ritos da justiça exigem decoro às insígnias do direito, da Lei. Os trajes, exóticos, são neste lugar deveras importantes. Agora o imponderável: Poderá acontecer um dia, eventualmente, deste mesmo operário ser condenado neste mesmo prédio. Uma simples canetada de um magistrado põe abaixo seu casebre e sua família na rua. Uma decisão de alguém, que nem sequer conhece o operário ou conviveu com ele para saber se é uma boa pessoa ou não; uma decisão que aciona tratores (dirigido por outros operários) e policiais que esmagam impiedosamente sua singela residência. Outros interesses são mais importantes. Contudo, se por acaso o operário um dia se revoltar, será preso e taxado de “vagabundo”, ainda que tenha passado toda vida trabalhando. O operário não percebia que no ato em que fincava a enxada apunhalava seu próprio coração. O operário não podia compreender que, ao embrutecer-se no trabalho pesado, com todas as suas forças criava seu algoz e também o letrado, que um dia se voltaria contra ele. Não percebia que a enxada que sulcava a terra ao mesmo tempo criava leis abstratas que o subjugariam. Surpresa. Espanto. O operário não percebeu que o juiz que o condenava não era senão sua própria imagem refletida num espelho côncavo. O seu sacrifício e o dos camaradas de sua classe que arriscaram a vida no alto dos andaimes engendraram aquele Edifício que é muito mais que um edifício. Edifício que de agora em diante olha-o concretamente, de semblante grave e severo. Vigia-o, questiona-o, reprova-o. Franze as enormes sobrancelhas, inquire. Impõe-se arrogantemente arrogante. O operário abaixa a cabeça, encolhe os ombros. O Edifício colossal intempestiva e subitamente ergue seu pé gigantesco e sem mais nem menos esmaga o operário, como uma barata. Esmaga-o e esmaga-o infinitas vezes, esmaga-o.

“Aquele que não tem capital nem dinheiro, ninguém se preocupa com ele. Se não encontra trabalho, pode roubar ou morrer de fome” (LEFEBVRE, 1999, p. 16). A classe burguesa não dá a mínima para o fetiche moderno, o que não impede de desfrutar de uma qualidade de vida incomparavelmente melhor que a dos trabalhadores ou daqueles que não encontram trabalho. “A vida dos ricos é um tédio, tão deprimente, coitadinhos!” Ora, não é nada disso! Mansões, iates, viagens a qualquer parte do mundo, a qualquer hora, melhores hotéis, restaurantes, hospitais, sem fila nem espera (...) enfim, fetiche da mercadoria! Ora, a classe burguesa (a superclasse) não dá a mínima para as fantasmagorias do fetiche e fará de tudo para manter seus privilégios - mesmo que o capitalismo esteja nos seus estertores. A classe média se sacrifica, se debate, se esperneia, grita, xinga, perde a compostura para assegurar suas pequenas posses. Os pobres se engalfinham, brigam, lutam pelo pão nosso de cada dia. Neste sentido, seríamos surpreendentemente ingênuos em pensar uma emancipação da humanidade ao largo das contradições do capitalismo e, consequentemente, imaginar uma maravilhosa aliança entre “indivíduos organizados”, isto é, patrões, trabalhadores e sem-tetos, todos de braços dados, unidos, marchando pelas ruas com faixas, cartazes e cantando palavras de ordem: “Fora fetiche! Fora fetiche! Abaixo o mundo da mercadoria! Hipe, hipe, hurra!”. Citando A Ideologia Alemã, de Marx, Lefebvre escreve:

Não é a consciência que determina a vida (social), mas a vida que determina a consciência. A libertação ‘é um fato histórico e não um fato intelectual. Impossível libertar os homens enquanto eles não forem capazes de adquirir o que lhes é necessário para viver: alimentação, bebida, habitação, vestuário em qualidade e quantidade perfeitas’ (vollständig). (ibidem, pp. 45 e 46).

A certa altura do livro “A produção do espaço”, Lefebvre compreende metodologicamente que se anuncia um tempo onde deixa de se produzir coisas para se produzir relações. Da mesma forma, Marx também anunciava a tendência de um mundo totalmente dominado pela mercadoria (fetiche).

Ora, Kurz leva ao extremo o fetiche moderno, algo que já havia sido anunciado por Marx, no capítulo inédito de O capital. Neste sentido, pergunta-se, “a mercadoria (o mercado mundial) ocupará o espaço inteiro. O valor de troca imporá a lei do valor ao planeta inteiro. Num sentido, a história não será senão aquela da mercadoria?” (vale a pena repetir esta frase da citação acima). Se for verdade que, e parece que sim, a mercadoria vem absorvendo todos os momentos da vida, não restaria nada na vida que lhe escapasse?  Resíduos, apenas? A festa, o amor, a amizade, a música, etc. No mundo da mercadoria: quais são então os seus obstáculos? A reprodução das relações sociais de produção reproduz também suas contradições, a exploração (mais-valia): sujeição, sofrimento, humilhação, desespero; que se repetem indefinidamente. O que suscita um dilema: sofrer eternamente ou mudar a vida! Noutras palavras: suportar o fardo da escravidão e viver de joelhos, humilhado para sempre, porque, de qualquer forma, assim será, ou dizer sim à vida e mudá-la radicalmente! A reprodução da submissão, sua repetição, engendra a diferença, a todo instante, aqui-agora, sempre se abrem dois caminhos, o novo e o mesmo. Em todas as circunstancias, em todo momento, sempre a possibilidade de mudar. O capitalista é reproduzido; o trabalhador, o sem-teto, o desempregado também. Repete-se o dilema: aceitar as premissas do fetiche, adorar a mercadoria e renunciar à vida ou dizer um basta. Seja qual for a escolha, assim serão repetidas infinitas vezes. Diariamente. Dia-após-dia. O cotidiano, assim, é o berço das revoluções.

Recapitulemos: por de trás da homogeneidade e transparência da lógica da identidade, quando reproduzida, descobrem-se diferenças incontáveis, contradições inconciliáveis. Em termos mais precisos, a reprodução das relações sociais de produção engendra também a reprodução das lutas sociais. As possibilidades infinitas contidas no ser humano não podem ser formatadas totalmente sem resistência. O residual é o sofrimento, a tristeza, a alegria, a felicidade, a criatividade; é no residual que se vai extrair o novo.

Estas concepções inspiradas na nossa leitura da obra de Lefebvre merecem mais algumas considerações. Para Lefebvre, a obra de Marx tende a um “reino dos fins”.

Quando Marx leva ao limite seu raciocínio teórico, para onde ele vai e o que encontra? O reino dos fins. Entre esses fins e os envolvendo, ou os supondo, para além dos fins parciais, se assim se pode dizer (o do capitalismo do Estado, da raridade, da filosofia, da história, da família etc.) tem-se precedentemente sublinhado o do trabalho. (LEFEBVRE, 1999, p. 128).

O que está em jogo no desenvolvimento das forças produtivas é a possibilidade da maquinaria ou do robô substituírem totalmente o ser humano na linha de montagem da fábrica, stricto sensu, e do trabalho em geral: o fim do trabalho. Lefebvre sublinha: “O trabalho só tem por sentido e por objetivo o não-trabalho” (Ibidem, p 129). Ou melhor: “O fim do trabalho, que paradoxo naquele que descobriu a importância do trabalho e passa, antes de tudo, pelo teórico da classe operária? E, entretanto, sabemo-lo já, a automatização da produção permite vislumbrar o fim do trabalho produtor” (Ibidem, p. 128). Marx é profundamente otimista neste aspecto. “Nada mais positivo que esta concepção de automatismo” (Ibidem p. 73). Mesmo se pensarmos num cenário tenebroso da automação, de desemprego, miséria, fome etc., haverá sempre a possibilidade de uma reviravolta e de submeter as máquinas à vontade humana. Marx supõe um desenvolvimento tão fabuloso da produção, por meio da automatização do capital constante, que deriva daí a coexistência de pelo menos duas perspectivas: primeiro, o reino da necessidade é substituído totalmente pelo reino da abundância e liberdade; e, segundo, o processo produtivo é totalmente automatizado a ponto de liberar as pessoas para atividades criativas, ligadas à arte, pedagogia, poesia etc. Todavia, o que se assiste hoje é o incremento do capital constante redundando em desemprego estrutural (já é até admitido cientificamente, para os economistas liberais, uma média de índice “x” de desempregados permanentes, que nunca assinarão a carteira: são qualificados de “desencorajados”). Esse paradoxo é latente: produção crescente e miséria, idem. A automação atual é altamente negativa. Portanto, novamente, há duas alternativas; somente duas; de duas, uma: 1. a contradição inerente ao capital o levaria automaticamente a um esgotamento de seus pressupostos, resultando num vácuo político aberto a aventureiros pouco recomendados; ou, 2. movimentos politicamente organizados assumiriam o controle e colocariam as máquinas para “trabalhar”, distribuindo igualmente os frutos da produção. Dessas duas alternativas, é possível extrapolar digressões através da identificação de virtualidades possíveis e formular questões: Se a robótica substituir completamente o trabalho humano, num futuro talvez não tão longínquo, será o fim do capitalismo, entretanto, as classes dominantes tentarão ainda exercer seu poder? E os “desencorajados”, que serão a imensa maioria, como poderão garantir sua sobrevivência? O mundo tornar-se-á mais violento? Escravos, de joelhos, vão implorar pelo beijo do chicote? Será necessário exterminar sistemática e aleatoriamente grandes contingentes populacionais em campos de concentração? As bombas atômicas serão jogadas sobre cidades novamente? Ou, num cenário um pouco mais otimista: A miséria humana será erradicada através da distribuição de recursos por políticas assistencialistas? Paremos por aqui, a lista de hipóteses é demasiadamente grande, basta imaginar. Mas, como resolver este dilema? Voltemos a repetir, sem uma praxis transformadora, o destino da humanidade permanecerá ao sabor dos acontecimentos caóticos do mundo, onde tudo será em vão! A autogestão parece surgir no horizonte como alternativa à barbárie[3].

Portanto onde se encontra a utopia? No coração do real que ele habita. Onde se encontra a “realidade”? No possível? Certamente. Mas o que é possível e impossível? (Ibidem, p. 73).

Utopia? Sim e não. Impossível? Sim e não. Virtualidades, apenas.

Possibilidade teórica e prática? Incontestavelmente. O encadeamento posterior das descobertas técnicas confirmou plenamente as visões de Marx. Impossibilidade? Certamente, nos quadros do capitalismo e mesmo da famosa ‘transição’ para uma sociedade socialista ou comunista. Utopia portanto, mas utopia concreta, possibilidade que ilumina o atual e que distancia o atual do possível” (Ibidem, p. 128).

Para encerrar, detenhamo-nos mais sobre um ponto, que ficamos devendo. Diz respeito à metodologia dos Grundrisse. Segundo Lefebvre, na introdução desta obra, Marx discorre sobre “categorias (conceitos)” de relações sociais mais desenvolvidas da sociedade burguesa que, todavia, permitem apreender as estruturas e relações de produção de sociedades passadas, pois subsistem vestígios e virtualidades que alcançam sentido pleno no capitalismo[4]. Tal método é aquilo que Lefebvre denominará regressivo-progressivo, isto é, compreender a gênese de um fenômeno, partindo do atual para o passado e inversamente. Vejamos:

A dialetização do próprio método se persegue, assim, sem que a lógica e a coerência tenham que sofrer. Não obstante, há riscos de obscuridade e de repetições. Marx nem sempre as evitou. Ele as conhecia. A tal ponto que a exposição d’O capital não segue exatamente o método promulgado nos Grundrisse. A grande exposição doutrinal parte de uma forma, a do valor de troca, e não de conceitos postos no primeiro plano na obra anterior: a produção e o trabalho. A démarche anunciada nos Grundrisse se reencontra a propósito da acumulação de capital: Marx mantinha suas proposições metodológicas desde quando estudava na Inglaterra o capitalismo o mais avançado, para compreender os outros países e o próprio processo de formação do capitalismo. (LEFEBVRE, 2003, Capítulo I, par. 169).

Neste sentido, “certos traços pré-capitalistas penetram no capitalismo. Eles se acentuam não somente na sua periferia agrícola, mas no próprio seio da realidade urbana” (LEFEBVRE, 1999, p. 163).

O capitalismo supera e conserva estes traços, dá-lhes um sentido novo, mas guarda os restos de sua história. O camponês expropriado está no operário, assim como o operário está no desempregado permanente, o “desencorajado”, etc. Ou, numa outra possibilidade, o capital, em momentos de crise, reinstitui a escravidão. Assim, as categorias (ou conceitos) do capitalismo quando projetadas ao passado, longe de representarem um anacronismo metodológico, muito pelo contrário, desvendam tais relações. Somente através da realidade atual se pode conceber e compreender o passado e, ainda, extrapolá-la virtualmente no futuro. Logo, o trabalho abstrato permite compreender o trabalho privado – independente – das sociedades pré-capitalistas, enquanto pressuposto, mas, por outro lado, permite vislumbrar também a superação do próprio trabalho social, o seu fim.

Há em Lefebvre uma positividade dialética – não a suprime – no desenrolar da história. A história da humanidade é a história da superação e dominação da natureza, inclusive, da natureza humana. O que faz pensar: a tão propalada hecatombe da natureza é simultaneamente a destruição da humanidade. O objetivo da produção em sentido amplo, da produção humana, é um paradoxo: o retorno à natureza, inclusive, à natureza humana. O desenvolvimento das forças produtivas no capitalismo, por exemplo, permitiu criar virtualmente o reino da abundância e da liberdade em relação à carestia e necessidade. Assim, o Estado moderno resgatou o ideal humanista, da igualdade e da liberdade, constituindo-se numa virtualidade presente mas ausente de fato. Os pressupostos do ideal humanista devem ser atualizados, urgentemente. O que provavelmente implica na ausência do Estado. Ao seguir a estrada, caminhando, acima somente o céu e os astros luminosos, testemunhas antigas de erros e acertos; ao redor, a natureza, preciosa; embaixo, a terra; atrás, lembranças, arrependimentos; à frente, uma bifurcação.

Fonte: Fragmento da tese de doutorado “Ocupar, Resistir, Construir, Morar” (Depto. de Geografia, FFLCH–USP, 2012), de autoria de Jean Pires de Azevedo Gonçalves (Laboratório de Geografia Urbana – LABUR - USP), disponível integralmente neste blog. Consultar bibliografia diretamente na tese.


Posts relacionados:

Alienação (1): otrabalho alienado; Alienação (2): a negatividade do trabalho; Alienação (3):trabalho abstrato e fetichismo;

A produção do espaço: de Henri Lefebvre à geografia

A questão do habitar na geografia urbana (01/09/08)



[1] (...) a crítica radical não significaria porventura querer mobilizar o sujeito (...) contra a escravizante objetivação mas antes, mobilizar, através da ‘brecha’ existente nos indivíduos reais, a ‘individualidade organizada’, que vai ganhando consciência do fato de não se encaixar nas nem reduzir às formas do fetiche, contra a compulsiva relação sujeito-objeto da constituição moderna da forma. (KURZ, 2003, par. 22).
[2] A acepção ampla, herdada da filosofia. Produção significa criação e se aplica à arte, à ciência, às instituições, ao próprio Estado, assim como às atividades geralmente designadas ‘práticas’. A divisão do trabalho que fragmenta a produção e faz com que o processo escape à consciência e a linguagem. A natureza, ela própria transformada, é produzida; o mundo sensível, que parece dado, é criado. (...) A acepção estrita, precisa, embora reduzida e redutora, herdada dos economistas (Adam Smith, Ricardo) mas modificada pela contribuição de uma concepção global, a história. (LEFEBVRE, 1999, p. 46). 
[3] Vejamos o que Bakunin tem a dizer sobre a autogestão: “É necessário a abolição do Estado, que nunca teve outra missão a não ser a de regularizar, sancionar e proteger, com a bênção da Igreja, a dominação das classes privilegiadas e a exploração do trabalho popular em proveito dos ricos. Logo, é preciso: a reorganização da sociedade, de baixo para cima, pela formação livre e pela livre federação das associações operárias, tanto industriais e agrícolas como científicas e artísticas, o operário tornando-se, ao mesmo tempo, homem de arte e de ciência, e os artistas e os sábios tornando-se também operários manuais, associações e federações livres, baseadas na propriedade coletiva da terra, dos capitais, das matérias-primas e dos instrumentos de trabalho (...)” (BAKUNIN,  1999, p. 190). E Marx: “É que assim que o trabalho começa a ser distribuído, cada homem tem um círculo de atividade determinado e exclusivo que lhe é imposto e do qual não pode sair; será caçador, pescador ou pastor, ou crítico, e terá de continuar a sê-lo se não quiser perder os meios de produção – ao passo que na sociedade comunista, na qual cada homem não tem um círculo exclusivo de atividade, mas se pode adestrar em todos os ramos que preferir, a sociedade regula a produção geral e, principalmente desse modo, torna possível que eu faça hoje uma coisa e amanhã outra, que cace de manhã, pesque de tarde, crie gado à tardinha, critique depois da ceia, tal como me aprouver, sem ter de me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico” (MARX, 1977, p. 47).
[4] “A produção do espaço”, Capítulo I, par. 165.


Nenhum comentário:

Postar um comentário