segunda-feira, 1 de abril de 2024

Partidos políticos nas vésperas de Outubro (1917) - por John Reed

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PARTIDOS POLÍTICOS

Nas eleições para a Assembleia Constituinte, dezessete listas se apresentaram em Petrogrado, e em algumas cidades do interior esse total chegou a quarenta; o resumo que faço a seguir sobre os objetivos e a composição dos partidos políticos limita-se, porém, aos grupos e facções mencionados neste livro. Detenho-me apenas no essencial de seus programas e no caráter geral dos elementos que os compõem.

1. Monarquistas de vários matizes, Outubristas etc. Essas facções, antes poderosas, não atuavam mais abertamente; dedicavam-se a atividades de bastidores ou tinham alguns de seus integrantes aderindo ao Cadete, à medida que o Cadete passava, gradativamente, a adotar o programa político dessas facções. São representados, neste livro, por Rodzianko e Shulgin.

2. Cadete. Nome formado a partir das iniciais [em russo, “K. D.”] de Partido Constitucional Democrata. Seu nome oficial é Partido da Liberdade do Povo. Composto sob o tsarismo por capitalistas liberais, o Cadete era o grande partido da reforma política, correspondente, grosso modo, ao Partido Progressista dos Estados Unidos. Quando a revolução eclodiu em março de 1917, o Cadete formou o primeiro Governo Provisório. Seu Ministério foi derrubado em abril depois de ter se declarado favorável aos objetivos dos aliados imperialistas, inclusive aos anseios imperialistas do governo do tsar. À medida que a revolução adquiria um caráter cada vez mais social e econômico, o Cadete se tornava, de seu lado, cada vez mais conservador. Seus representantes neste livro são Miliukov, Vinaver e Shatski.

(a) Grupo dos Homens Públicos. Depois que o Cadete se tornou impopular devido à sua ligação com a contrarrevolução de Kornilov, formou-se em Moscou o Grupo dos Homens Públicos. Representantes desse grupo obtiveram pastas no último gabinete ministerial de Kerenski. O grupo se declarava apartidário, embora seus mentores intelectuais fossem gente como Rodzianko e Shulgin. Era composto por banqueiros, comerciantes e industriais mais “modernos”, inteligentes o bastante para saber que o combate aos sovietes exigia o uso da mesma arma que estes utilizavam — a organização econômica. Representantes típicos do grupo: Lianozov e Konovalov.

3. Socialistas Populistas ou Trudoviques (Grupo Trabalhista). Partido numericamente pequeno, composto por inteletuais cautelosos, dirigentes de cooperativas e camponeses conservadores. Embora proclamando-se socialistas, os populistas apoiavam, na verdade, os interesses da pequena burguesia — funcionários, lojistas etc. Herdeiros diretos da tradição conciliadora do Grupo Trabalhista na Quarta Duma Imperial, composto em grande parte por deputados camponeses. Quando a revolução de março de 1917 eclodiu, Kerenski era o líder dos trudoviques na Duma Imperial. Os Socialistas Populistas são um partido nacionalista. São representados neste livro por Peshekanov e Tchaikovski.

4. Partido Operário Social-Democrata Russo. Originalmente, eram socialistas marxistas. Em congresso realizado em 1903, o partido se cindiu, por questões de tática, em duas facções: a maioria (bolshinstvo) e a minoria (menshintsvo). Daí os nomes bolcheviques e mencheviques — “membros da maioria” e “membros da minoria”. As duas alas tornaram-se dois partidos separados, ambos autointitulados Partido Operário Social-Democrata Russo e proclamando-se marxistas. A partir da revolução de 1905, os bolcheviques passaram a ser, na verdade, minoritários, voltando a ser majoritários em setembro de 1917.

(a) Menchevique. Esse partido inclui todas as matizes de socialistas que acreditam que a sociedade deve avançar para o socialismo por uma evolução natural e que a classe trabalhadora deve, primeiro, conquistar o poder político. É também nacionalista. Era o partido dos intelectuais socialistas, o que significa que, estando todas as possibilidades de educação nas mãos das classes proprietárias, os intelectuais reagiram instintivamente à sua própria formação e acabaram por se aliar às classes proprietárias. Entre seus representantes neste livro estão Dan, Lieber e Tseretelli.

(b) Mencheviques Internacionalistas. Ala radical dos mencheviques; internacionalistas opostos a qualquer coalizão com a burguesia, embora não desejem uma ruptura com os mencheviques conservadores, e à ditadura do proletariado propugnada pelos bolcheviques. Trótski foi por um tempo membro desse grupo. Entre seus dirigentes: Martov e Martinov.

(c) Bolcheviques. Agora autointitulado Partido Comunista, com o propósito de enfatizar sua total separação em relação à tradição de socialismo “moderado” ou “parlamentar” que ainda caracteriza os mencheviques e os assim chamados “socialistas majoritários” em todos os países. Os bolcheviques propunham a insurreição proletária imediata e a tomada das rédeas do governo, a fim de acelerar o advento do socialismo por meio da tomada à força da indústria, das terras, dos recursos naturais e das instituições financeiras. Esse partido expressa sobretudo os anseios dos operários fabris, mas também de boa parte dos camponeses pobres.

“Bolchevique” não pode ser traduzido como “maximalista”. Os “maximalistas” formam um outro grupo (veja o parágrafo 5b). Entre seus líderes: Lênin, Trótski e Lunatcharski.

(d) Social-Democratas Internacionalistas Unificados. Também chamado grupo da Novaya Zhizn (Vida Nova), referência ao nome de seu jornal, de grande influência. Pequeno grupo de intelectuais com poucos adeptos na classe trabalhadora, com exceção dos seguidores de Maksim Górki, seu líder. Intelectuais, com basicamente o mesmo programa dos mencheviques internacionalistas, com a diferença de que o grupo Novaya Zhizn se recusava a se manter atrelado a uma ou outra das grandes facções. Opunham-se às táticas bolcheviques, mas permaneceram no governo soviético. Outros representantes seus neste livro: Avilov e Kramanov.

(e) Yedinstvo. Grupo bastante pequeno e cada vez menor, composto quase inteiramente por seguidores de Plekhanov, um dos pioneiros do movimento social-democrático russo nos anos 1880 e seu grande teórico; agora bastante idoso, Plekhanov era de um patriotismo radical, excessivamente conservador, até mesmo para os mencheviques. Com o coup d’État bolchevique, o Yedinstvo desapareceu.

5. Partido Socialista Revolucionário. Chamados de “esseerres”, por causa das iniciais de seu nome [S. R.]. Originalmente, era o partido dos camponeses revolucionários, partido das organizações de combate: os terroristas. Depois da revolução de março, obteve a adesão de muitos militantes que nunca foram socialistas. Naquela época, os “esseerres” defendiam a abolição da propriedade privada apenas no campo, com indenização para os proprietários de uma forma ou de outra. Ao final, a radicalização do sentimento revolucionário entre os camponeses levou os “esseerres” a abandonarem a ideia da indenização, e os mais jovens e mais ardorosos de seus intelectuais a se desligarem de seu partido, no outono de 1917, para formar um novo partido, o Socialista-Revolucionário de Esquerda. Os “esseerres” — que mais tarde passaram a ser chamados, pelo grupo radical, de Social-Revolucionários de Direita — adotaram a postura política dos mencheviques e atuaram em conjunto com eles. Acabaram se tornando representantes dos camponeses abastados, dos intelectuais e das populações desprovidas de qualquer educação política dos rincões rurais mais distantes. Internamente, porém, havia maiores diferenças de opinião política e econômica do que entre os mencheviques. Dentre seus dirigentes mencionados nestas páginas estão: Avksentiev, Gotz, Kerenski, Tchernov e “Babushka” [“Vovó”] Breshkovskaia.

(a) Socialistas Revolucionários de Esquerda. Embora concordassem teoricamente com o programa bolchevique da ditadura do proletariado, hesitavam de início em acompanhar suas táticas impiedosas. Integraram, no entanto, o governo soviético, assumindo algumas pastas no gabinete, em especial a da Agricultura. Deixaram o governo em várias oportunidades, mas sempre acabaram voltando. Ao se afastarem, em grande número, dos “esseerres”, os camponeses passaram a aderir ao Partido Socialista Revolucionário de Esquerda, que se tornou o maior partido camponês de apoio ao governo soviético, apregoando o confisco das grandes propriedades de terras sem indenização e sua distribuição pelos próprios camponeses. Entre seus dirigentes: Spiridonova, Karelin, Kamkov e Kalagaiev.

(b) Maximalistas. Grupo oriundo de uma cisão ocorrida no Partido Socialista Revolucionário durante a revolução de 1905, quando constituía um poderoso movimento camponês que exigia a imediata aplicação do programa máximo socialista. É, hoje, um grupo insignificante de camponeses anarquistas.

Fonte: John Reed, “O congresso camponês” (capítulo 12), in: 10 dias que abalaram o mundo. Tradução: Bernardo Ajzenberg. Editora Companhia das Letras (Pinguim), São Paulo.

sexta-feira, 1 de março de 2024

A resolução dos rebeldes de Kronstadt

Do dia 1 a 18 de março de 1921, ocorreu um levante na base naval da Frota do Báltico, situada na cidade-fortaleza de Kronstadt, fundada por Pedro I, na ilha de Kotlin, Golfo da Finlândia, que entrou para a história da Guerra Civil na Rússia Soviética como a “Rebelião de Kronstadt”.

Em 28 de fevereiro de 1921, em uma assembleia geral das equipes dos navios de guerra Sevastopol e Petropavlovsk, foi adotada uma resolução exigindo a reeleição do conselho em Kronstadt (soviete) e reivindicado a remoção do Partido Comunista Bolchevique do poder.

No dia 1º de março, uma resolução foi aprovada por uma manifestação da guarnição e dos moradores da cidade que se reuniram para comemorar o aniversário da Revolução de Fevereiro de 1917, na Praça da Âncora, em Kronstadt.

Em 2 de março, foi realizada uma reunião geral de representantes das tripulações de navios e unidades do Exército Vermelho, na qual foi decidido a criação de um Comitê Revolucionário Provisório (CRP), em Kronstadt, para organizar "eleições livres e justas para um novo conselho" da cidade fortaleza.

No apelo lançado pelo Comitê Militar Revolucionário, os bolcheviques foram acusados ​​de serem responsáveis ​​pela ruína econômica, fome e frio no país, causando, por conseguinte, agitação entre os trabalhadores de Petrogrado e Moscou. Com o início do levante, cerca de 900 comunistas da guarnição de Kronstadt deixaram o PCR.

O governo se recusou a negociar com a guarnição insurgente de Kronstadt e, no dia 4 de março de 1921, em nome do Comitê de Defesa de Petrogrado, foi lançado um ultimato, denominado “Kronstadt enganada”, que exigia o fim da rebelião. Trotsky confiou a liderança direta da operação militar ao comandante do Exército Vermelho Tukhachevsky.

A guarnição de Kronstadt consistia de um efetivo de 17.961 homens, 134 canhões pesados, 62 canhões leves, 24 canhões antiaéreos e 126 metralhadoras. Era uma força formidável capaz de se defender com sucesso. Além disso, os participantes do levante esperavam que “Makhno e Antonov insurgissem em seu apoio”, ou seja, dando início de uma série de revoltas camponesas na Ucrânia e na província de Tambov. Em contrapartida, sob o comando de Tukhachevsky, as forças reunidas eram bem mais modestas - cerca de 11.000 pessoas, com 96 metralhadoras e 84 canhões.

O poder em Kronstadt estava concentrado nas mãos do Comitê Revolucionário Provisório, formado por 15 veteranos e chefiado pelo escrivão sênior do encouraçado Petropavlovsk, Stepan Maximovich Petrichenko, que demonstrava simpatia política aos Socialistas Revolucionários de esquerda.

Segundo os bolcheviques, a defesa de Kronstadt durante a revolta estava sob o comando do Quartel-General da Fortaleza, supervisionado por especialistas militares, incluindo o chefe da artilharia, o ex-major-general do exército czarista A.N. Kozlovsky. Para o governo, a grande maioria dos comandantes e oficiais da guarnição da fortaleza concordou em participar voluntariamente da rebelião.

O programa político do levante foi formulado em 1º de março de 1921, através da resolução aprovada pela reunião dos marinheiros dos encouraçados Petropavlovsk e Sevastopol.

Possui 15 itens:

“1) Tendo em vista que os sovietes não expressam mais a vontade dos operários e camponeses, requer-se a realização imediata de eleição para os sovietes por voto secreto e campanha  preliminar livre com a participação de todos os operários e camponeses.

2) Liberdade de consciência e de imprensa para operários, camponeses, anarquistas e partidos socialistas de esquerda.

3) Liberdade de reunião e de associação camponesa e sindical.

4) Convocação de uma conferência não partidária de operários, camponeses, soldados do Exército Vermelho e marinheiros das montanhas, de Kronstadt e de Petrogrado e província, até 10 de março de 1921, o mais tardar.

5) Libertação de todos os presos políticos de partidos socialistas, bem como todos os trabalhadores e camponeses, soldados do Exército Vermelho e marinheiros envolvidos em movimentos operários e camponeses.

6) Eleição de uma comissão para analisar os casos de prisioneiros em campos de concentração.

7) Abolir todos os departamentos políticos, pois nenhum partido pode gozar de privilégios para propagar suas ideias e receber fundos do Estado em sua própria causa. Em vez disso, estabelecer comissões culturais e educacionais eleitas localmente, para as quais os fundos devem ser alocados pelo Estado.

8) Remoção imediata de todos os destacamentos de estradas (blitz).

9) Uniformizar as porções de ração para todos os trabalhadores, com exceção daqueles que exercem atividade insalubre nas oficinas de alto risco.

10) Abolir os destacamentos de combate comunista em todas as unidades militares, bem como em fábricas e usinas; se tais destacamentos forem necessários, no entanto, estes podem ser designados para unidades militares de empresas, fábricas e usinas, seguindo critérios estipulados por trabalhadores.

11) Pleno direito de usufruto dos camponeses sobre suas terras e também  o gado, salvo em caso de uso de mão de obra assalariada que está proibida.

12) Pedimos a todas as unidades militares, bem como aos colegas cadetes militares, para que apoiem à nossa resolução.

13) Exigimos que todas as resoluções sejam amplamente divulgadas na imprensa.

14) Nomeação de uma agência de inspeção para controle.

15) Permitir a livre produção de artesanato por meio de mão de obra própria e não assalariada.

O significado geral do programa da guarnição rebelde era o de rejeitar a política do “comunismo de guerra”. Ao mesmo tempo, no bloco econômico, a maioria dos requisitos não contradizia com as novas diretrizes econômicas – a NEP – que já havia sido aprovada pela liderança bolchevique nas vésperas do X Congresso do PCR. Mas a parte política do programa estava permeada pela aspiração de apear os bolcheviques do poder. O lema “Todo poder aos sovietes, não aos partidos” tornou-se o principal slogan do movimento de Kronstadt.

Tendo em vista a escassez de alimentos, a CRP estabeleceu normas fixas para a distribuição diária de alimentos.

O primeiro assalto à fortaleza teve início em 7 de março de 1921. O ataque falhou devido à rendição do batalhão do 561º regimento, que participava da ofensiva. Em 10 de março, unidades da 27ª divisão, com obuses e artilharia pesada, foram transferidas da Frente Ocidental. No dia 17 de março iniciou-se um novo assalto e a queda da fortaleza. Uma parte significativa dos rebeldes, incluindo a maioria dos membros do Comitê Militar Revolucionário, deixou Kronstadt através do Golfo da Finlândia, evadindo-se para a Finlândia.

As perdas das tropas soviéticas totalizaram 3 mil e 143 pessoas; enquanto as perdas dos rebeldes ultrapassaram mil pessoas.

Três mil “participantes ativos na rebelião” foram presos, alguns dos quais condenados à morte, outros a cinco anos de trabalhos forçados e cerca de um terço deles foi libertado ou condenado a um ano de serviço comunitário em liberdade condicional. Os encouraçados rebeldes foram renomeados: o Sevastopol se tornou “Comuna de Paris” e o Petropavlovsk, "Marat".

O Presidente da Rússia baixou um decreto datado de 10 de janeiro de 1994, nº 65: “Sobre os eventos em Kronstadt na primavera de 1921”. Segundo o documento, os participantes do levante foram reabilitados e foi tomada a decisão de erguer um memorial para todas as suas vítimas.

A memória histórica registrou o levante de Kronstadt como um símbolo de ideais da aspiração por uma sociedade livre e de autogoverno, de um sistema de poder desprovido de conteúdo político-partidário e da liberdade própria da revolução russa como um todo.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

O Congresso Camponês, por John Reed

 


Em 18 de novembro, começou a nevar. Quando acordamos, de manhã, os beirais das janelas estavam cobertos de branco, e os flocos caíam com tanta densidade, que era impossível enxergar para além de dez passos. A lama desaparecera; em um piscar de olhos, a cidade escura se tornara toda branca, cintilante. Os droshki, com seus cocheiros agasalhados e as barbas salpicadas de branco, tinham se transformado em verdadeiros trenós, deslizando a toda velocidade, aos solavancos, pelas ruas desniveladas… Apesar da Revolução e de que a Rússia estivesse mergulhando vertiginosamente em um futuro terrível e desconhecido, a chegada da neve encheu de alegria a cidade. Todos sorriam; as pessoas saíam para as ruas, esticando os braços, sorridentes, para alcançar os flocos de neve em sua queda. Tudo o que era cinzento desaparecera; apenas as flechas e cúpulas douradas e coloridas, com seu maravilhoso esplendor potencializado, brilhavam em meio à neve branca.

Até mesmo o sol resolveu aparecer, pálido e lavado, ao meio-dia. Os resfriados e reumatismos dos meses de chuva iam embora. Alegrou-se a vida na cidade e a Revolução começou a se acelerar…

Uma noite, eu estava em um traktir — uma espécie de cabaré popular — em frente ao Smolny, do outro lado da rua; era um local barulhento e com pé-direito baixo, chamado “A Cabana do Pai Tomás”, frequentada principalmente por Guardas Vermelhos. Eles lotavam o lugar naquela noite, amontoados em torno de pequenas mesas com toalhas manchadas e enormes chaleiras de porcelana, enchendo o ar de fumaça, enquanto os garçons, exaustos, corriam para todos os lados gritando “Seichass! Seichass! Já vou! Já vou!”.

Em um dos cantos, um homem sentado, com uniforme de capitão, se dirigia a um grupo, que o interrompia a todo instante.

“Vocês não passam de uns assassinos!”, gritava ele. “Atirando nos seus próprios irmãos russos no meio das ruas!”

“Quando foi que fizemos isso?”, perguntou um operário.

“No domingo passado, quando os yunkers…”

“Pois bem, e eles não atiraram em nós?” Um dos homens exibiu o braço pendurado em uma tipoia. “E eu, não tenho algo aqui para guardar de lembrança desses demônios?”

O capitão então gritou com a força máxima de sua voz. “Vocês deveriam ficar neutros! Vocês deveriam ficar neutros! Quem vocês pensam que são para derrubar o governo legal? Quem é Lênin? Um alemão…”

“Quem é você? É um contrarrevolucionário! Um provocador!”, bradaram os outros.

Quando o grupo se acalmou um pouco, o capitão se levantou. “Muito bem!”, disse ele. “Vocês dizem que são o povo russo. Mas vocês não são o povo russo. O povo russo são os camponeses. Esperem só, até que os camponeses…”

“Sim”, gritaram, “esperemos até que os camponeses se pronunciem. Nós sabemos o que eles vão dizer… Pois não são trabalhadores, como nós?”

Em resumo, tudo dependia dos camponeses. Embora politicamente atrasados, tinham suas próprias ideias e formavam mais de 80% da população russa. Os bolcheviques contavam com relativamente poucos seguidores entre os camponeses; e seria impossível durar para sempre, na Rússia, uma ditadura dos operários industriais… O partido camponês tradicional era o Partido Revolucionário Socialista; de todos os partidos que agora apoiavam o governo soviético, os Socialistas Revolucionários de Esquerda seriam, pela lógica, os herdeiros da liderança camponesa — e os Socialistas Revolucionários de Esquerda, por sua vez, colocados à mercê do proletariado urbano organizado, precisavam desesperadamente de apoio em meio aos camponeses…

Nesse entretempo, o Smolny não negligenciara o peso dos camponeses. Depois do Decreto sobre a Terra, um dos primeiros atos do Tsik foi convocar um Congresso Camponês, passando por cima do Comitê Executivo dos Sovietes de Camponeses. Poucos dias depois, divulgou-se o regulamento detalhado dos Comitês Agrários de Volost (distritos), seguido da Instrução aos Camponeses de Lênin, que explicava, em palavras simples, a revolução bolchevique e o novo governo; no dia 16 de novembro, Lênin e Mily utin divulgaram as Instruções aos Emissários Provisórios, enviados aos milhares às províncias pelo governo soviético:

1. Assim que chegar à província da qual foi encarregado, o emissário deverá convocar uma reunião conjunta de todos os Comitês Executivos dos Sovietes de Deputados Operários, Soldados e Camponeses, para os quais deve fazer um relato a respeito das leis agrárias e em seguida pedir a convocação de uma reunião plenária dos sovietes…

2. Ele deve estudar os diversos aspectos da questão agrária da província.

(a) Foram os grandes proprietários afastados? Se sim, em quais distritos?

(b) Quem administra as terras que foram confiscadas? Os antigos proprietários ou os comitês agrários?

(c) O que foi feito dos equipamentos de uso rural e dos animais das fazendas?

3. Houve aumento da área cultivada pelos camponeses?

4. Em quanto a quantidade de terra cultivada difere da quantidade média mínima determinada pelo governo?

5. O emissário deve insistir em que, depois de os camponeses receberem a terra, é imperativo que incrementem a área cultivada o mais rápido possível e que acelerem o envio de grãos para as cidades, como única forma de combater a fome.

6. Quais são as medidas previstas ou já executadas para a transferência da terra dos grandes proprietários para os comitês agrários ou organizações similares designadas pelos sovietes?

7. É desejável que as propriedades rurais bem conduzidas e bem equipadas sejam administradas pelos sovietes compostos pelos funcionários regulares dessas propriedades sob a supervisão de engenheiros agrônomos.

Espalhou-se por todos os vilarejos o fermento da mudança, estimulado não só pelo impacto eletrizante do Decreto sobre a Terra, mas também pela presença de milhares de camponeses soldados adeptos da Revolução que retornavam do front… Esses homens, em especial, receberam muito bem a convocação do Congresso Camponês.

Como o antigo Tsik fizera em relação ao segundo Congresso de Sovietes de Operários e Soldados, o Comitê Executivo tentou esvaziar o Congresso Camponês convocado pelo Smolny. E, assim como o antigo Tsik, verificando a inutilidade de sua resistência, o Comitê Executivo espalhou telegramas frenéticos orientando que se elegessem delegados conservadores. Divulgouse até mesmo, entre os camponeses, que o Congresso seria realizado em Moghilev, e alguns delegados chegaram a ser mandados para lá; mas, em 23 de novembro, cerca de quatrocentos deles estavam em Petrogrado, e tiveram início as reuniões dos partidos.

A primeira sessão se realizou na sala Alexander do edifício da Duma, e a primeira votação mostrou que metade dos delegados era de Socialistas Revolucionários de Esquerda, enquanto os bolcheviques controlavam cerca de 20%, os socialistas revolucionários conservadores cerca de 25%, e o restante se unia apenas em torno da oposição ao antigo Comitê Executivo, dominado por Avksentiev, Tchaikovski e Peshekhonov…

A grande sala, abarrotada, se agitava com os clamores incessantes; um profundo e permanente amargor dividia os delegados em grupos raivosos. À direita, viam-se as ombreiras cintilantes dos oficiais e os rostos patriarcais e barbudos dos camponeses mais velhos e abastados; ao centro, alguns poucos camponeses, suboficiais e soldados; e, à esquerda, quase todos os delegados usavam uniformes de soldados comuns. Estes representavam a nova geração, que estivera servindo o Exército… As galerias estavam lotadas de operários — que, na Rússia, ainda se lembravam bem de sua origem camponesa…

Diferentemente do que fizera o antigo Tsik, o Comitê Executivo não reconheceu o Congresso como oficial — o Congresso oficial estava convocado para 13 de dezembro. Em meio a uma tempestade de aplausos e gritos irados, o representante do Comitê Executivo anunciou que aquele encontro era apenas uma “Conferência Extraordinária…”. A tal “Conferência Extraordinária”, porém, logo mostrou como via o Comitê Executivo, elegendo Maria Spiridonova, líder dos Socialistas Revolucionários de Esquerda, para presidir os trabalhos.

A maior parte do primeiro dia de trabalho foi tomada por um violento debate sobre se os representantes dos sovietes distritais também seriam admitidos, ou se seriam apenas os dos sovietes das províncias. Como ocorrera no Congresso dos Operários e Soldados, a imensa maioria se declarou favorável à mais ampla representação possível, o que levou o velho Comitê

Executivo a se retirar do encontro…

Em seguida, ficou evidente que a maioria dos delegados era hostil ao governo dos Comissários do Povo. Zinoviev, tentando falar em nome dos bolcheviques, foi enxotado, e, sem conseguir falar, ao deixar a tribuna em meio a muitos risos ouviu gritos de “Vejam como fugiu da raia nosso comissário do Povo!”.

“Nós, Socialistas Revolucionários de Esquerda”, disse Nazariev, um delegado das províncias, “nos recusamos a reconhecer esse autodenominado Governo Operário e Camponês enquanto os camponeses não estiverem realmente representados nele. Até o momento, ele não é outra coisa senão uma ditadura dos operários… Insistimos na necessidade da formação de um novo governo que represente a democracia como um todo!”

Os delegados reacionários estimularam habilmente essa atitude, declarando, diante dos protestos das fileiras dos bolcheviques, que o Conselho dos Comissários do Povo estava procurando ou controlar o Congresso ou então dissolvê-lo com o uso da força — afirmação que foi recebida com grande fúria pelos camponeses.

No terceiro dia, Lênin subiu de repente à tribuna. Durante dez minutos, a sala foi à loucura.

“Tirem-no daí!”, gritavam. “Não ouviremos nenhum de seus comissários do Povo! Não reconhecemos seu governo!”

Lênin permaneceu ali, calmo, segurando o púlpito com as duas mãos, pensativo, os olhos pequeninos observando o tumulto à sua frente. Finalmente, com exceção da ala direita, as manifestações cessaram por si só, quase por inteiro.

“Não estou aqui como membro do Conselho dos Comissários do Povo”, disse Lênin, e aguardou novamente que o silêncio voltasse. “Mas sim como membro da facção bolchevique, devidamente eleita para este Congresso.” E ergueu sua credencial, de modo a que todos pudessem vê-la.

“No entanto”, retomou com uma voz monocórdia, “ninguém poderá negar que o atual governo da Rússia foi formado pelo Partido Bolchevique” — teve de aguardar um momento — “o que, para todos os propósitos, dá na mesma…” Nesse instante, das fileiras da direita emanou uma barulheira ensurdecedora, mas o centro e a esquerda, que se mostravam curiosos, impuseram o silêncio.

O argumento de Lênin era simples. “Digam-me francamente, vocês, camponeses, a quem nós transferimos as terras dos pomieshchiki. Vocês gostariam de impedir que os operários assumissem o controle das fábricas? Trata-se de uma guerra de classes. É evidente que os pomieshchiki se opõem aos camponeses assim como os industriais se opõem ao operários. Vocês permitirão que as fileiras do proletariado se dividam? De que lado vocês ficarão?

“Nós, bolcheviques, somos o partido do proletariado — tanto do proletariado camponês quanto do proletariado industrial. Nós, bolcheviques, somos defensores dos sovietes, tanto dos sovietes camponeses quanto dos sovietes operários e de soldados. O atual governo é um governo dos sovietes; não apenas convidamos os sovietes camponeses a integrar esse governo, como também convidamos representantes dos Socialistas Revolucionários de Esquerda a integrar o Conselho dos Comissários do Povo…

“Os sovietes são a forma mais perfeita de representação do povo — dos operários das fábricas e das minas e dos trabalhadores do campo. Quem quer que procure destruir os sovietes é culpado de ato antidemocrático e contrarrevolucionário. E devo alertá-los aqui, camaradas Socialistas Revolucionários de Direita — e também aos senhores do Cadete —, de que, se a Assembleia Constituinte tentar acabar com os sovietes, não permitiremos, em hipótese alguma, que ela o faça!”

Na tarde de 25 de novembro, Tchernov chegou esbaforido de Moguilev, chamado pelo Comitê Executivo. Considerado apenas dois meses antes um revolucionário radical, e bastante popular entre os camponeses, fora chamado, agora, para evitar o perigoso deslocamento operado pelo Congresso para a esquerda. Assim que chegou, Tchernov foi preso e levado ao Smolny, onde, depois de uma breve conversa, foi liberado.

Seu primeiro ato foi repreender severamente os membros do Comitê Executivo pela decisão de se retirar do Congresso. Eles concordaram, então, em retornar, e Tchernov adentrou a sala, recebido com fortes aplausos pela maioria e com gritos e vaias pelos bolcheviques.

“Camaradas! Eu estava fora, participando da Conferência do 12º. Exército sobre a questão da convocação de um congresso de todos os delegados dos exércitos da frente ocidental, e sei muito pouco a respeito da insurreição que ocorreu aqui…”

Zinoviev se levantou e gritou: “Sim, você estava fora… por alguns minutos!”. Um tumulto enorme, e gritos de “Abaixo o bolchevique!”.

Tchernov prosseguiu falando. “A acusação de que ajudei a conduzir um exército contra Petrogrado não tem fundamento e é absolutamente mentirosa. De onde veio essa informação?

Digam-me qual é a fonte!”

Zinoviev: “Do Izvestia e do Dielo Naroda — seu próprio jornal. Daí que veio a informação!”.

O rosto de Tchernov, grande, com olhos pequeninos, cabelos ondulados e barba grisalha, ficou corado de raiva, mas ele conseguiu se controlar e seguiu em frente. “Repito que não sei quase nada sobre o que se passou aqui, e que não liderei nenhum exército, a não ser este [e indicou os delegados camponeses], por cuja presença, aqui, sou amplamente responsável!” Risos e gritos de “Bravo!”.

“Assim que cheguei, estive no Smolny. Essa acusação não foi feita a mim ali… Saí de lá depois de uma rápida conversa — e é só! Que alguém presente nesta sala tenha a ousadia de repetir tal acusação!”

Seguiu-se um tumulto generalizado, durante o qual os bolcheviques e alguns Socialistas Revolucionários de Esquerda se mantiveram de pé brandindo os punhos e gritando, enquanto o restante da assembleia tentava calá-los gritando ainda mais.

“Isto é uma vergonha, não uma reunião!”, exclamou Tchernov, deixando a sala. Devido ao tumulto e à desordem que se instalou, o encontro foi suspenso…

Enquanto isso, a questão do papel e das atribuições do Comitê Executivo ocupava todas as cabeças. Ao se chamar a reunião de “Conferência Extraordinária”, a intenção era impedir uma nova eleição para o Comitê Executivo. Tal postura, porém resultou em uma faca de dois gumes: os Socialistas Revolucionários de Esquerda decidiram que, uma vez que o Congresso não teria poderes sobre o Comitê Executivo, este, então, também não poderia ter poderes em relação ao Congresso. Em 25 de novembro, a assembleia aprovou que os poderes do Comitê Executivo seriam assumidos pela Conferência Extraordinária, na qual apenas membros do comitê eleitos como delegados teriam direito a voto…

No dia seguinte, a despeito da forte oposição dos bolcheviques, a resolução sofreu uma emenda que dava aos membros do Comitê Executivo, eleitos delegados ou não, o direito de voz e de voto na assembleia.

No dia 27, deu-se o debate sobre a questão da terra, no qual se revelaram as diferenças entre os programas agrários dos bolcheviques e dos Socialistas Revolucionários de Esquerda.

Kolchinski, falando pelos Socialistas Revolucionários de Esquerda, traçou um panorama histórico de como a questão da terra se desenvolveu no decorrer da Revolução. O I Congresso dos Sovietes de Camponeses, disse ele, aprovara uma resolução oficial explícita a favor da imediata transferência dos domínios dos proprietários rurais para as mãos dos Comitês Agrários.

Mas os dirigentes da Revolução, e os burgueses do governo, insistiram em que nada fosse decidido sobre a questão até que a Assembleia Constituinte se reunisse… O segundo período da Revolução, o período do “compromisso”, foi marcado pela entrada de Tchernov no Ministério.

Os camponeses estavam convencidos, então, de que finalmente a questão da terra seria tratada; mas, apesar da decisão impositiva aprovada pelo I Congresso Camponês, os reacionários e conciliadores do Comitê Executivo impediram qualquer passo nesse sentido. Essa política provocou uma série de levantes rurais, que surgiram como uma expressão natural da impaciência e da energia reprimida dos camponeses. Estes compreenderam o claro sentido da Revolução e tentaram transformar as palavras em ações…

“Os últimos acontecimentos”, disse o orador, “não foram um simples levante ou uma ‘aventura bolchevique’, mas, ao contrário, uma verdadeira insurreição popular, recebida com simpatia em todo o país…

“Os bolcheviques, de modo geral, adotaram uma postura correta em relação à questão da terra; porém, ao recomendar que os camponeses tomassem as terras à força, cometeram um grave erro… Desde o primeiro dia, os bolcheviques declararam que os camponeses deveriam ocupar as terras ‘pela ação revolucionária das massas’. Isso não é outra coisa senão a anarquia; a terra pode ser tomada de forma organizada… Para os bolcheviques, o que importava era que os problemas da Revolução fossem resolvidos da maneira mais rápida possível — e não estavam interessados em saber como essas questões seriam resolvidas…

“O decreto do Congresso dos Sovietes sobre a terra é idêntico, em seus fundamentos, às decisões do I Congresso Camponês. Por que, então, o novo governo seguiu as táticas delineadas por aquele Congresso? Porque o Conselho dos Comissários do Povo queria acelerar a resolução da questão agrária, de modo a que a Assembleia Constituinte já não pudesse fazer mais nada a respeito…

“Mas o governo também percebeu que era preciso adotar medidas práticas. Então, sem muito refletir, adotou a Regulamentação dos Comitês Agrários, criando, com isso, uma situação estranha; pois, se o Conselho dos Comissários do Povo abolira a propriedade privada da terra, a regulamentação definida para os Comitês Agrários se baseava na propriedade privada… Isso, no entanto, não ocasionou maiores problemas, porque os Comitês Agrários não deram muita atenção aos decretos do soviete, optando por colocar em prática suas próprias decisões — decisões baseadas nos anseios da ampla maioria dos camponeses.

“Esses Comitês Agrários não buscavam tratar da questão legislativa relacionada às terras, que deve ser vista pela Assembleia Constituinte… Mas será que a Assembleia Constituinte agirá conforme o desejo dos camponeses russos? Não podemos ter nenhuma certeza em relação a isso… Tudo o que podemos dizer é que a determinação revolucionária dos camponeses agora aflorou, e que a Constituinte se verá forçada a tratar da questão agrária da maneira como os camponeses querem que ela trate… A Assembleia Constituinte não se atreverá a se chocar com os anseios do povo…”

Lênin falou em seguida, sendo ouvido, dessa vez, com uma atenção intensa. “Neste momento, não estamos tentando resolver apenas a questão agrária, mas também a questão da Revolução Social — e não apenas aqui, na Rússia, mas em todo o mundo. A questão da terra não pode ser solucionada separadamente dos outros problemas da Revolução Social… Por exemplo, o confisco das grandes propriedades de terra provocarão resistência não apenas por parte dos grandes proprietários russos, mas também do capital externo, ao qual os grandes proprietários de terras estão vinculados por intermédio dos bancos…

“A propriedade da terra na Rússia está na base de uma grande opressão, e o confisco da terra pelos camponeses é o passo mais importante de nossa Revolução. Mas ele não pode ser visto em separado dos outros passos, como ficou claramente demonstrado nos diferentes estágios pelos quais a Revolução teve de passar. O primeiro estágio foi aniquilar a autocracia e o poder dos capitalistas industriais e grandes proprietários rurais, cujos interesses estão estreitamente ligados entre si. O segundo estágio foi o fortalecimento dos sovietes e o compromisso político estabelecido com a burguesia. O erro dos Socialistas Revolucionários de Esquerda, naquele momento, foi não se terem oposto à política de compromisso, por defenderem a teoria de que a consciência das massas ainda não estava suficientemente desenvolvida…

“Se o socialismo só puder ser concretizado quando o desenvolvimento intelectual de todo o povo o tornar possível, então não teremos socialismo pelo menos nos próximos quinhentos anos… O partido político socialista constitui a vanguarda da classe operária; não pode frear a si mesmo por causa da ausência de educação da média das massas, e sim liderar as massas, usando os sovietes como órgãos que adotam iniciativas revolucionárias… Mas, para arrastar consigo aqueles que vacilam, os Socialistas Revolucionários de Esquerda têm de acabar com suas próprias hesitações…

“No último mês de julho, iniciou-se uma série de conflitos abertos opondo as massas populares aos ‘conciliadores’; mas mesmo agora, em novembro, os Socialistas Revolucionários de Esquerda ainda estendem suas mãos a Avksentiev, que, com o dedo mindinho, puxa o povo junto… Se a política do compromisso permanecer, é a Revolução que irá desaparecer. Nenhuma conciliação com a burguesia é possível; seu poder deve ser totalmente aniquilado…

“Nós, bolcheviques, não mudamos nosso programa agrário; não abrimos mão da abolição da propriedade privada da terra, e não pretendemos fazê-lo. Adotamos as regulamentações para os Comitês Agrários — que não são, de modo algum, baseadas na propriedade privada — porque queremos fazer cumprir os anseios populares da maneira como o próprio povo decidiu fazer isso, como uma forma de aproximar as forças de coalizão de todos os elementos que estão em luta pela Revolução Social.

“Convidamos os Socialistas Revolucionários de Esquerda a fazer parte desta coalizão, insistindo, no entanto, em que parem de ficar olhando para trás e rompam com os ‘conciliadores’ de seu partido…

“No que concerne à Assembleia Constituinte, é verdade, como disse o orador que me precedeu, que os trabalhos da Assembleia Constituinte dependerão da determinação revolucionária das massas. Pois eu afirmo: ‘Conte com a determinação revolucionária, mas não esqueça de levar o fuzil!’.”

Em seguida, Lênin passou a ler a proposta de resolução dos bolcheviques:

O Congresso Camponês aprova irrestritamente o Decreto sobre a Terra de 8 de novembro […] aprovado pelo Governo Provisório de Operários e Camponeses da República Russa, instituído pelo II Congresso Pan-Russo dos Sovietes de Deputados Operários e Soldados.

O Congresso Camponês […] conclama todos os camponeses a dar apoio a esta lei e a implementá-la imediatamente, por conta própria; ao mesmo tempo, convida os camponeses a eleger para os postos e posições de responsabilidade apenas pessoas que tenham provado, não em palavras mas por meio de atos, sua absoluta devoção aos interesses dos trabalhadores explorados do campo, seu desejo e sua habilidade para defender esses interesses contra toda e qualquer resistência por parte dos grandes proprietários, dos capitalistas, seus acólitos e cúmplices.

O Congresso Camponês, ao mesmo tempo, exprime sua forte convicção de que a realização completa de todas as medidas previstas no Decreto sobre a Terra só poderá ter sucesso em conjunto com a Revolução Social dos Operários, que teve início em 7 de novembro de 1917; pois apenas a Revolução Social pode consolidar de modo definitivo, sem possibilidade de retorno, a transferência da terra para os trabalhadores do campo; o confisco das fazendas-modelo e sua entrega às comunas; o confisco das máquinas pertencentes aos grandes proprietários; a proteção dos interesses dos trabalhadores agrícolas através da abolição completa da escravidão assalariada; a distribuição regular e sistemática, para todas as regiões da Rússia, dos produtos industriais e agrícolas; e a tomada dos bancos (sem o que a tomada da terra pelo povo se tornará impossível após a abolição da propriedade privada), e [consolidar] todo tipo de apoio, por parte do Estado, aos operários…

Por essas razões, o Congresso Camponês decide apoiar integralmente a revolução de 7 de novembro […] como uma revolução social, e expressa seu inabalável desejo de colocar em ação, com todas as modificações que se fizerem necessárias, mas sem hesitação, a transformação social da República Russa.

As condições indispensáveis para a vitória da Revolução Socialista, única capaz de assegurar o êxito duradouro e a completa aplicação do Decreto sobre a Terra, são a forte união dos trabalhadores do campo com a classe operária industrial e com o proletariado de todos os países avançados. A partir de agora, em toda a República Russa, toda a organização e a administração do Estado, de alto a baixo, deve estar baseada nessa união. Somente essa união, ao sufocar qualquer tentativa direta ou indireta, aberta ou dissimulada, de retorno à velha política de conciliação com a burguesia — conciliação já condenada pela experiência prática—, poderá garantir a vitória do socialismo no mundo inteiro.

Os reacionários do Comitê Executivo já não se atreviam a se expor abertamente. Tchernov, porém, falou várias vezes, com uma imparcialidade modesta e cativante. Foi convidado a tomar parte da mesa… Na segunda noite do Congresso, um texto anônimo chegou às mãos do presidente dos trabalhos, propondo que Tchernov fosse eleito presidente honorário. Ustinov leu a nota em voz alta. Imediatamente, Zinoviev se ergueu, gritando que se tratava de uma manobra do velho Comitê Executivo para controlar o encontro; de uma hora para outra, a sala se tornou um mar de braços em movimento e de rostos irados. Ainda assim, Tchernov manteve sua forte popularidade.

No decorrer dos acirrados debates sobre a questão agrária e a resolução de Lênin, por duas vezes os bolcheviques estiveram prestes a deixar a sala, sendo contidos por suas lideranças… Parecia-me que o Congresso se encontrava em um impasse inescapável.

Mas nenhum de nós sabia que, àquela altura, uma série de reuniões secretas já estava se realizando no Smolny entre os Socialistas Revolucionários de Esquerda e os bolcheviques. Inicialmente, os Socialistas Revolucionários de Esquerda exigiam que fosse constituído um governo composto por todos os partidos socialistas, estivessem ou não dentro dos sovietes, que responderia a um Conselho do Povo composto em igual número de delegados das organizações operárias e dos soldados, além das organizações dos camponeses, e complementado por representantes das Dumas municipais e dos zemstvos; Lênin e Trótski ficariam de fora, e o Comitê Militar Revolucionário, juntamente com outros órgãos repressivos, seria dissolvido.

Na quarta-feira de manhã, 28 de novembro, após uma noite inteira de fortes disputas, chegouse a um acordo. O Tsik, composto por 108 membros, seria ampliado para mais 108 membros eleitos proporcionalmente pelo Congresso Camponês; por cem delegados eleitos diretamente pelo Exército e pela Marinha; e por cinquenta representantes dos sindicatos (35 das federações nacionais, dez dos ferroviários, e cinco dos Correios e Telégrafos). As Dumas e os zemstvos não participariam. Lênin e Trótski permaneciam no governo, e o Comitê Militar Revolucionário continuaria a existir.

As sessões do Congresso tinham sido agora transferidas para o prédio da Faculdade Imperial de Direito, no número 6 do cais de Fontanka, sede dos sovietes camponeses. Os delegados se reuniram ali, quarta-feira à tarde, na grande sala de assembleias. O antigo Comitê Executivo, que fora destituído, fazia uma reunião própria, paralela, em uma sala do mesmo edifício, com a participação de delegados dissidentes e representantes dos Comitês do Exército.

Tchernov circulava entre as duas reuniões, observando de perto o desenrolar de cada uma. Ele sabia que um acordo com os bolcheviques estava sendo discutido, mas não sabia que este já tinha sido feito.

Tomou a palavra, na reunião paralela, dizendo: “Agora que todos se colocam a favor da formação de um governo com todos os socialistas, muitos se esquecem do primeiro ministério, que não era um governo de coalizão, que tinha no seu seio apenas um socialista — Kerenski — e que foi, ao seu tempo, bastante popular. Agora as pessoas atacam Kerenski; esquecem que ele foi levado ao poder não só pelos sovietes, mas também pelas massas populares…

“Por que a opinião pública mudou em relação a Kerenski? Os selvagens inventam deuses para os quais rezam, mas também punem esses deuses caso não atendam a suas orações… É isso que está acontecendo agora… Ontem era Kerenski; hoje, Lênin e Trótski; amanhã serão outros…

“Nós propusemos aos dois lados, Kerenski e os bolcheviques, que deixassem o poder. Kerenski aceitou — hoje mesmo ele anunciou, de seu esconderijo, a renúncia ao posto de primeiro ministro; mas os bolcheviques querem manter o poder, sendo que não sabem o que fazer com ele…

“Sejam ou não bem-sucedidos os bolcheviques, o destino da Rússia não vai se alterar. Os camponeses de toda a Rússia sabem perfeitamente o que querem, e estão tomando suas próprias medidas… Ao final, serão eles que nos salvarão a todos…”

Nesse entretempo, na grande sala, Ustinov anunciava o acordo selado entre o Congresso Camponês e o Smolny, que foi recebido pelos delegados com uma alegria selvagem. Subitamente, Tchernov apareceu e pediu a palavra.

“Entendo”, começou, “que um acordo está sendo concluído entre o Congresso Camponês e o Smolny. Esse acordo, porém, seria ilegal, visto que o verdadeiro Congresso dos Sovietes Camponeses só se reunirá a partir da próxima semana…

“Mais do que isso, gostaria de alertá-los de que os bolcheviques jamais aceitarão suas exigências…”

Foi interrompido, então, por enormes gargalhadas, e, percebendo a situação, deixou a tribuna e a sala, levando junto sua popularidade…

No final da tarde de 29 de novembro, o Congresso promoveu uma sessão extraordinária. Havia no ar um clima de festa; em todos os rostos se via um sorriso… Aceleraram-se as demais questões da ordem do dia, e então o velho Nathanson, o decano de barbas brancas da ala esquerda dos socialistas revolucionários, com a voz trêmula e lágrimas nos olhos, passou a ler o relatório sobre o “casamento” dos sovietes camponeses com os sovietes dos operários e soldados. A cada vez que mencionava a palavra “união”, choviam aplausos de êxtase… Ao final, Ustinov anunciou a chegada de uma delegação do Smolny, acompanhada de representantes da Guarda Vermelha, recebidos com uma enorme ovação. Um operário, um soldado e um marinheiro sucederam-se na tribuna para saudar todos os presentes.

Falou em seguida Boris Reinstein, delegado do Partido Trabalhista Socialista NorteAmericano: “O dia da união do Congresso Camponês e dos Sovietes de Deputados Operários e Soldados é um dos grandes dias da Revolução. O som deste encontro ecoará em todo o mundo — em Paris, em Londres e, atravessando o oceano, em Nova York. Esta união encherá de alegria os corações de todos os trabalhadores do mundo.

“É o triunfo de uma grande obra. O Ocidente e a América esperavam do proletariado russo algo grandioso… O proletariado internacional aguarda a Revolução Russa, aguarda os grandes feitos que ela está consolidando…”

Sverdlov, presidente do Tsik, veio então saudar a todos. E ao grito de “Viva o fim da guerra civil! Viva a Democracia Unida!”, os camponeses foram deixando o edifício.

Já era noite, e a luz pálida da lua e das estrelas se refletia na neve branca. Ao longo do canal, marchavam enfileirados os soldados do regimento de Pavlovski, com sua banda, que tocava a Marseillaise. Recebidos pelos gritos roucos e profundos dos soldados, os camponeses também se enfileiravam, portando o grande estandarte vermelho do Comitê Executivo Pan-Russo dos Sovietes Camponeses, recém-bordado em dourado com os seguintes dizeres: “Viva a união das massas revolucionárias e trabalhadoras!”. Seguiam-se outros estandartes, dos sovietes distritais e também da fábrica Putilov, que dizia: “Saudamos esta bandeira, garantia da fraternidade de todos os povos!”.

Tochas apareceram, tingindo a noite de uma coloração alaranjada e refletindo-se milhares de vezes, espalhando-se em nuvens de fumaça entre a multidão, enquanto esta avançava ao longo do canal Fontanka cantando em meio a espectadores que se mantinham em silêncio, perplexos.

“Longa vida ao Exército Revolucionário! Longa vida à Guarda Vermelha! Longa vida aos camponeses!”

A enorme passeata percorreu a cidade, aumentando aos poucos e empunhando mais estandartes com dizeres bordados a ouro. Dois velhos camponeses, os corpos encurvados de tanto trabalho acumulado, caminhavam de mãos dadas, os rostos iluminados por uma alegria infantil.

“Bem”, disse um deles, “agora é que eu quero ver eles tomarem de volta as nossas terras!”

Nas proximidades do Smolny, a Guarda Vermelha estava alinhada nos dois lados da rua, esfuziante de felicidade. O outro camponês idoso se dirigiu a seu camarada: “Não me sinto cansado”, disse ele, “andei o dia inteiro como se estivesse voando!”.

Na escadaria do Smolny, agrupavam-se cerca de cem deputados operários e de soldados, com seu estandarte, escuro em contraste com a luminosidade que se espalhava pelas arcadas. Como uma onda, desceram correndo para receber os camponeses com beijos e abraços; o cortejo então avançou para dentro do portão e subiu a escadaria, produzindo o som de um turbilhão…

Na imensa sala branca de reuniões, o Tsik aguardava, em conjunto com todo o Soviete de Petrogrado e cerca de mil espectadores, tomados pela solenidade que acompanha os grandes momentos da história quando seus protagonistas têm consciência dele.

Zinoviev anunciou o acordo selado com o Congresso Camponês, sendo saudado por uma vibração que fazia tremer as paredes e que se transformou em verdadeira tempestade de ovações quando chegou do corredor o som da banda e, atrás dela, os que encabeçavam o cortejo. Na tribuna, a mesa dos trabalhos se levantou e abriu espaço para acomodar a mesa dos camponeses, todos se abraçando uns aos outros. Atrás deles, as duas bandeiras se entrelaçavam tendo como pano de fundo a parede branca, de onde fora retirado o retrato do tsar…

Abriu-se, então, a “sessão solene”. Depois de algumas palavras de boas-vindas pronunciadas por Sverdlov, subiu à tribuna Maria Spiridonova, esquálida, pálida, com óculos enormes e os cabelos lisos sobre os ombros e um ar de professora universitária da Nova Inglaterra — era a mais amada e mais poderosa mulher de toda a Rússia.

“Abrem-se para os trabalhadores da Rússia novos horizontes, jamais vistos pela História… Todos os movimentos de trabalhadores foram derrotados no passado. Mas o atual movimento é internacional, e por isso mesmo se torna invencível. Não há força no mundo capaz de apagar o fogo da Revolução! O velho mundo desaba, o novo mundo começa…”

Veio então Trótski, altamente inflamado: “Dou-lhes as boas-vindas, camaradas camponeses! Vocês estão aqui não como visitantes, mas como senhores desta casa, que abriga o coração da Revolução Russa. Os anseios de milhões de trabalhadores estão agora concentrados nesta sala… Só existe um senhor da terra russa: a união dos operários, soldados e camponeses…”.

Com um sarcasmo amargo, ele prosseguiu falando dos diplomatas dos Aliados, que até então vinham desdenhando a proposta de armistício feita pela Rússia, proposta que fora aprovada pelas Potências Centrais.

“Uma nova humanidade nascerá desta guerra… Diante desta sala, juramos aos trabalhadores de todos os países que nos manteremos em nosso posto revolucionário. Se formos derrotados, será lutando em defesa de nossa bandeira…”

Em seguida falou Kry lenko, relatando a situação no front, onde Dukhonin preparava a resistência ao Conselho dos Comissários do Povo. “Logo faremos Dukhonin e seus aliados entenderem muito bem que não trataremos com delicadeza aqueles que querem obstaculizar o caminho para a paz!”

Dy benko saudou os presentes em nome da Marinha, e Krushinski, membro do Vikzhel, afirmou: “A partir de agora, quando se consolida a união de todos os verdadeiros socialistas, o exército de ferroviários se coloca totalmente à disposição da democracia revolucionária!”. Falaram em seguida Lunatcharski, com lágrimas nos olhos, e Proshian, em nome dos Socialistas Revolucionários de Esquerda, e, por fim, Saharashvili, pelos Social-Democratas Internacionalistas Unidos, formados pelos grupos de Martov e de Górki, que declarou:

“Nós nos retiramos do Tsik por causa da política intransigente dos bolcheviques e para forçálos a concessões para se forjar a união de toda a democracia revolucionária. Agora que essa união se realizou, consideramos um dever sagrado de nossa parte voltar a integrar o Tsik… Defendemos que todos aqueles que haviam se retirado do Tsik devem agora retornar”.

Stachkov, um velho e venerável camponês, integrante da mesa de trabalhos do Congresso Camponês, voltou o olhar para os quatro cantos da sala. “Saúdo a todos com o batismo de uma nova vida e de uma nova liberdade na Rússia!”

Seguiram-se Gronski, em nome da Social-Democracia da Polônia; Skripnik, pelos Comitês de Fábrica; Tifonov, pelos soldados russos de Salonika; e outros, interminavelmente, falando com o coração aberto, com a alegre eloquência da esperança realizada…

Já era tarde da noite quando foi submetida, e aprovada por unanimidade, a seguinte resolução:

O Tsik, reunido em sessão extraordinária com o Soviete de Petrogrado e com o Congresso Camponês, reafirma os Decretos sobre a Terra e a Paz aprovados pelo II Congresso dos Sovietes de Deputados Operários e Soldados, bem como o Decreto sobre Controle Operário aprovado pelo Tsik.

A sessão conjunta do Tsik e do Congresso Camponês expressa sua firme convicção de que a união dos operários, soldados e camponeses — essa fraterna união de todos os trabalhadores e de todos os explorados — consolidará o poder por ela conquistado para em seguida adotar todas as medidas revolucionárias necessárias para acelerar a transferência do poder para as mãos da classe operária em outros países e dessa maneira assegurar a consolidação duradoura de uma paz justa e a vitória do socialismo.

Fonte: John Reed, “O congresso camponês” (capítulo 12), in: 10 Dias que Abalaram o Mundo. Tradução: Bernardo Ajzenberg. Editora Companhia das Letras (Pinguim), São Paulo. 

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Memorial ao 100º aniversário da Revolta de Kronstadt

“Esta tragédia do passado deve nos unir em torno do pensamento de que nada disso deve acontecer novamente” (V. Putin).

A revolta dos marinheiros de Kronstadt (28 de fevereiro a 18 de março de 1921) foi motivada pela ditadura dos bolcheviques e pela política do “comunismo de guerra”, durante a Guerra Civil na Rússia Soviética. Durante a repressão do levante de Kronstadt, no Golfo da Finlândia, mais de 2.000 pessoas morreram e mais de 6.000 foram enviadas para a prisão.

Em 2020, o RVIO anunciou um concurso para eleger o melhor design de um memorial dedicado ao 100º aniversário da revolta de Kronstadt. Cinco projetos arquitetônicos e artísticos foram apresentados. O Conselho Criativo RVIO, presidido por A.S. Konchalovsky, escolheu um projeto de Denis Stritovich e Timur Yurchenko. Os autores descreveram a ideia de seu memorial da seguinte forma:

O espaço da composição arquitetônica metafórica forma um volume triangular de mármore branco com uma diagonal dominante. O ritmo progressivo dos pilares de mármore localizados nas laterais aumenta a dinâmica do movimento. Os pilares são cobertos por contrarrelevos tingidos de preto – figuras de marinheiros armados com rifles em casacos e boinas.

A solução plástica é lacônica, as imagens são desprovidas de individualidade, despersonalizadas, generalizadas e quase simbólicas. As figuras retratadas fizeram sua escolha, estão avançando para seu destino predeterminado - para onde as bordas convergentes do mármore se assemelham aos contornos da popa de um navio ou aos montes erguidos pelo elemento relativo ao ambiente gelado. O olhar do espectador capta apenas reflexos negros no ‘gelo’ branco do mármore.

Da frente do monumento, uma via branca como a neve, cortada por uma rachadura, se abre para o futuro. Essa quebra no gelo é uma metáfora para a divisão da sociedade, o trágico colapso de ideais, a quebra de destinos.

O centro semântico da composição é a figura de um marinheiro. Ele é jovem, cheio de energia, tem toda uma vida pela frente, mas também caminha por esta via simbólica para o Gólgota. Mas algo o fez parar e se virar para nós. E neste movimento para o espectador; neste olhar pensativo reside a nossa esperança de que a sociedade tire conclusões das trágicas lições da história e das convulsões revolucionárias, que caminhe para o desenvolvimento e a consolidação da democracia e que não permita a repetição de situações em que o próprio povo mate a si mesmo.


Que este memorial sirva de lembrança da tragédia da Guerra Civil, que dividiu o povo e deixou inúmeras vítimas.

O memorial foi erguido pela Sociedade Histórica Militar Russa com o apoio do Governo de São Petersburgo em dezembro de 2021.

No entanto, meses antes, no dia 18 de março de 2021, já havia sido inaugurado um monumento em memória ao levante de Kronstadt, na ponta oeste da Ilha de Kotlin, perto do Forte Rif – local por onde teriam fugido os marinheiros para a Finlândia no final do conflito. O autor da escultura, Pavel Ignatiev, criou a instalação a partir de fragmentos de metal descobertos nos arredores do forte. Os objetos encontrados, com a sua estética brutal, superfícies curvas e perfuradas, contam mais do que palavras e slogans os trágicos acontecimentos de 1921.

Na cerimônia de inauguração do memorial, o prefeito de Kronstadt, Oleg Dovganyuk, discursou com espírito conciliatório, enfatizando que os dois lados beligerantes possuíam sua própria verdade. Não é por acaso que o evento solene foi programado para coincidir com o fim do levante - 18 de março, e não com seu início - 28 de fevereiro de 1921.